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terça-feira, 7 de outubro de 2014

Indenização por abandono afetivo. Decisões judiciais e finalidades econômicas

Indenização por abandono afetivo - uma outra perspectiva
No Brasil, ao contrário dos EUA, ainda é incomum o estudo detido da relação entre decisões judiciais dos Tribunais Superiores, ainda mais em matéria de Direito de Família, e suas repercussões nos custos sociais e no comportamento dos indivíduos, repercutindo nas gerações subsequentes. A literatura jurídica especializada, ainda afeita ao estilo lógico-dedutivo de aplicação da norma ao fato, tem deixado passar despercebido o fato mesmo de que, por baixo da capa principiológica que frequentemente floreia os manuais de Direito e as decisões judiciais em casos paradigmáticos, está o aplicador do direito mais afeito aos fins e consequências que sua decisão poderá gerar no bojo da sociedade – i. E., os comportamentos induzidos ou desestimulados nos indivíduos – que apenas e tão somente na realização pura e simples de um princípio abstrato na resolução justa do caso concreto, abstraída de quaisquer ponderações fático-econômicas em sentido mais amplo.
É o caso do recente julgamento, pelo Superior Tribunal de Justiça, do Recurso Especial 1.159.242/SP, o qual inaugurou, pela Terceira Turma do referido Tribunal, a adoção definitiva da indenização por danos morais em face do denominado abandono afetivo.
O presente artigo busca evidenciar que a decisão paradigmática referida supra tem, sob a perspectiva dos pressupostos teóricos da AED (Análise Econômica do Direito), todo o perfil de uma decisão, por assim dizer, economicista, na medida em que, malgrado todo o esforço argumentativo para se demonstrar cabalmente a justiça da tese – dentro de uma perspectiva do Direito como fenômeno abstrato de essência axiológica e construção dedutiva das soluções dos conflitos no caso concreto, tem-se que a finalidade buscada, mas sonoramente omitida pela jurisprudencia, é de natureza prática, e advém do fato indutivamente observado de que há uma correlação forte entre o abandono afetivo e a delinquência infanto-juvenil.

1. Responsabilidade civil por abandono afetivo e fundamentos clássicos

No discurso jurídico clássico, a figura da responsabilidade civil constitui-se numa espécie obrigacional complexa, com elementos vários e subespécies oriundas de um processo histórico de construção de adaptações do instituto às demandas da modernidade industrial.
Ocioso portanto repisar e indicar que historicamente a responsabilidade civil, tendo por princípio a justiça comutativa aristotélica, emerge do direito canônico para as codificações liberais como obrigação de indenizar decorrente de ato culposo do autor da lesão ao patrimônio da vítima, para em tempos mais recentes afastar a culpa como elemento essencial de sua definição e abarcar hipóteses de indenização por danos morais e à lesão de outras categorias de bens, tais como, apenas a título de exemplo, os de natureza ambiental, que são considerados difusos e coletivos.
Assim, como todo objeto cultural, está a responsabilidade civil sujeita às adaptações que o contexto social demanda, notadamente a partir das lides judiciais, local onde as soluções mais criativas tem sido construídas em praticamente qualquer âmbito de aplicação do Direito, ante o fato de que a realidade dos conflitos está sempre um passo à frente da letra da lei feita para regular o futuro baseado na experiência passada:
Todo este quadro heurístico foi construído em cima da premissa, cristalizada e condensada pelo movimento positivista, de que o juiz era um mero executor da lei. Mas esse mundo – o mundo do direito reduzida à lei e às “suas” apertadas formas de exegese – desabou e desapareceu. Basta pensar quão longe estamos da escola do direito positivo e dos seus corolários; basta pensar na verdadeira revolução metodológica que a aplicação do direito sofreu no último século. Não há hoje quem não tenha consciência do papel criativo e constitutivo do juiz na prolação da decisão judicial, da sua intervenção própria, da sua tensão criadora de direito para o caso concreto. (RANGER, 2007, p. 90)
Entretanto, a cultura jurídica nacional, com seu modus argumentandi, sua retórica lógico-dedutiva e seus conceitos próprios, ainda é profunda e arraigadamente positivista. Maior prova disto está nos centros produtores de pesquisa jurídica, cuja pobreza e petrificação da denominado saber jurídico tem sido objeto de preocupação:
Portanto, as questões que avassalam contemporaneamente a ciência jurídica advém dos seus modelos, de inspiração positivista (Séculos XIX e XX), encontrando-se, no início do século XXI, em situação absolutamente calamitosa a pesquisa científica do direito, que se manteve atrelada aos fluxos normativos advindos dos poderes do Estado. Pouco se fez e pouco se faz no sentido da genuína pesquisa histórica, sociológica, filosófica... Do direito, dominando na cultura jurídica nacional um profundo apreço pela ideia de que o direito é uma ciência social aplicada, e que, portanto, deve-se ater à discussão e ao comentário da legislação positiva. (BITTAR; 2005, p. 368)
Como não poderia deixar de ser, dentro deste contexto juspositivista atrelado ao discurso lógico-dedutivo de aplicação do direito, a figura jurídica do abandono afetivo é definida como um corolário da ausência ou omissão do dever legal de educação dos pais, no seu sentido mais amplo:
O abandono afetivo se configura, desta forma, pela omissão dos pais, ou de um deles, pelo menos relativamente ao dever de educação, entendido este na sua acepção mais ampla, permeada de afeto, carinho, atenção, desvelo. Esta a fundamentação jurídica para que os pedidos sejam levados ao Poder Judiciário, na medida em que a Constituição Federal exige um tratamento primordial à criança e ao adolescente e atribui o correlato dever aos pais, à família, à comunidade e à sociedade. (HIRONAKA, 2007)
Com a citada autora faz coro a majoritária doutrina nacional, classificando ainda a referida indenização na categoria de dano moral ou extrapatrimonial.
A responsabilidade civil por dano moral, segundo a abalizada literatura jurídica a respeito, tem por finalidade primordial, na realização da justiça comutativa, compensar o dano causado. Autores de referência na matéria como Paulo Lôbo, associam o dano moral à violação de direitos da personalidade, e conseguintemente, à indenização com finalidade compensatória do ofendido (LÔBO, 2001), sem nenhuma palavra no sentido de um fim punitivo do ofensor ou desestimulante da conduta a este ou outros potenciais ofensores.
Por vezes, escapa à pena dos autores o fato de que a indenização, notadamente aquela atribuída à violação dos direitos da personalidade (i. E., por danos morais), pari passu à sua função compensatória da vítima, evidencia subliminar caráter comportamental, a saber, desestimular o comportamento considerado ilícito, exercendo a função de sanção ou punição pelo ato praticado:
Fácil é denotar que o dinheiro não terá na reparação do dano moral uma função de equivalência própria do ressarcimento do dano patrimonial, mas um caráter, concomitantemente, satisfatório para a vítima e lesados e punitivo para o lesante, sob perspectiva funcional. (ALVARENGA, 2009)
Especificamente no que se refere ao abandono afetivo indenizável, também de modo muito insipiente, há referências aqui e ali às consequências do comportamento que se quer sancionar como sendo lesivo à coletividade, por implicar em custos sociais coletivos advindos de atos individuais:
Assim, não há dúvidas de que o pai negligente, que deixa faltar o cuidado e o afeto, tão indispensáveis ao filho, causa perenes danos à saúde psicológica dessa criança, com reflexos em toda sua vida. Isso não quer dizer que uma pessoa que sofreu abandono afetivo jamais lute por seus direitos ou saiba respeitar os demais indivíduos da sociedade; definitivamente, não é isso. Pelo contrário, muitas pessoas existem que passaram por esse tipo de abandono e, hoje, são adultos com família constituída, bem-sucedidos profissionalmente, exercendo seus papéis de cidadãos na sociedade. Contudo, não há como negar que a falta de afetividade causa marcas para o resto da vida, como a mágoa, a tristeza e a sensação de abandono. (MOYSÉS, 2012).
Ainda de que modo indireto, utilizando-se da negativa, faz a missivista supra referência clara à conexão existente entre a paternidade exercida sem responsabilidade, os danos à personalidade daí advindos e o custo social de tal conduta, traduzidos no desajustamento pessoal, familiar e social do indivíduo lesado.
Como é de praxe na exposição de temas jurídicos, as assertivas que fundamentam as decisões judiciais ou a interpretação de dispositivos legais para o fim de reprimir comportamentos socialmente indesejáveis são comumente lastreadas em lugares-comuns e raramente se baseiam em estudos científicos sobre a matéria. A tese do abandono afetivo é desses lugares-comuns que tomaram a posição de verdade inquestionável e pressuposto fático do dano pela sua existência, ainda que sob difícil delineio fático. Nada poderia ser mais temerário para a segurança dos cidadãos do que deixar ao arbítrio do magistrado julgar por lugares-comuns, opiniões pré-científicas e jargões consolidados se houve ou não dever de indenizar para, num segundo momento, arbitrar a seu bel prazer, sem critério algum a priori, o quanto de seu patrimônio acumulado pelo trabalho de anos será dilapidado pelo “prudente arbítrio judicial”:
A negligência e/ou omissão paterna, nas obrigações imateriais, poder gerar danos morais no menor. Conforme já mencionado, é notória e imprescindível a presença materna e paterna na vida de uma criança, jovem e adolescente, pois a ausência daqueles, pode comprometer a adequada estruturação da personalidade destes. O divórcio e a dissolução põem fim a conjugalidade, nada interferindo na relação filial, que se mantêm indissolúvel. A proteção, cuidado, convivência familiar e outras condutas de ordem imaterial, são imposições inerentes da paternidade responsável. Pressuposto para o sadio e equilibrado crescimento psíquico, social e ético-existencial da criança, jovem e do adolescente. (ALVARENGA, 2012)
A análise de excertos da doutrina jurídica relativa à responsabilidade civil, e mais especificamente ao abandono afetivo indenizável, indica que a busca da justiça no caso concreto tateia nos fundamentos e está aquém de desestimular as condutas lesivas que sanciona, ainda que implicitamente reconheça esta finalidade.

2. Indenização por abandono afetivo, sua finalidade e a ponderação das consequências das decisões judiciais - uma perspectiva a partir da análise econômica do direito

Em seu best-seller, Freakonomics, o economista Steven Levitt evidencia a relação de causa e efeito entre a legalização do aborto nos Estados Unidos, promovida por decisão da Suprema Corte em 1973, e a queda vertiginosa e uniforme dos índices de violência nos anos 90. O que se evidencia do fato, a meu ver de difícil negação, que emerge implícito da constatação descrita é a relação de causa e efeito entre paternidade e maternidade irresponsável e o seu custo social e econômico:
Acontece que, quando se trata de criminalidade, nem todas as crianças nascem iguais. Ou mesmo parecidas. Décadas de estudo demonstraram que uma criança nascida em um ambiente familiar adverso tem muito mais probabilidade que outras de se tornar um bandido. E os milhões de mulheres com mais probabilidade de fazer um aborto na esteira de Roe x Wade – pobres, solteiras e adolescentes para as quais, no passado, os abortos ilegais costumavam ser caros demais ou pouco acessíveis – eram, em sua maioria, exemplos rematados de adversidade, ou seja, precisamente as mulheres cujos filhos, se nascidos, teriam mais probabilidade do que outras crianças de se tornarem criminosos. Devido, contudo, ao caso Roe x Wade, essas crianças não nasceram. Esse famoso processo viria a produzir um efeito drástico no futuro distante: anos mais tarde, justamente quando essas crianças não-nascidas atingiriam a idade do crime, o índice de criminalidade começou a despencar.
Não foi o controle sobre as armas nem uma economia em crescimento ou as novas estratégias políticas o que finalmente reverteu a onda americana de criminalidade, mas, entre outros, o fato de o número de criminosos potenciais ter minguado drasticamente.
Agora vejamos: quando os especialistas em queda de criminalidade (os ex-profetas da catástrofe) apresentaram à mídia suas teorias, quantas vezes a legalização do aborto foi mencionada? Nenhuma. (DUBNER, Stephen; LEVITT, Steven; 2005, p. 18)
Ainda, segundo Levitt, geralmente por trás dessas mães proibidas de abortar estavam mulheres que não planejaram a maternidade, viciados em drogas, adolescentes desempregadas e diversas outras categorias cuja maternidade não estava nos planos de vida e que, com raras exceções, não iriam contar com uma estrutura familiar suficiente para construir no infante em formação um ser humano apto à convivência social sem grandes conflitos com a lei e a ordem.
Do ponto de vista econômico, a responsabilidade civil cumpre um papel de desestímulo a determinadas condutas consideradas socialmente lesivas, pelo estabelecimento de uma sanção pecuniária ao seu agente:
A finalidade econômica da responsabilidade civil é induzir os autores e vítimas de lesões a internalizarem os custos do dano que pode ocorrer em consequencia da falta de cuidado. O direito da responsabilidade civil internaliza esses custos fazendo o causador da lesão indenizar a vítima. Quando os autores de atos ilícitos em potencial internalizam os custos dos danos que causam, eles tem incentivo para investir em segurança no nível eficiente. A essência econômica do direito da responsabilidade civil consiste em seu uso da responsabilização para internalizar externalidades criadas por custos de transação elevados (COOTER, ULEN; 2010, p. 322).
Com o precedente aberto, a Corte de Uniformização de Lei Federal mandou um recado para toda a sociedade: o ato da paternidade impõe um correspectivo ônus de natureza personalíssima que transcende a dimensão financeira, e que impõe uma conduta continuada de cuidado e convivência. A conduta positiva de gerar um filho, sob a égide da indenizabilidade do abandono afetivo impõe uma “internalização dos custos” de uma paternidade ou maternidade irresponsável, a teor da teoria econômica aplicada ao instituto juscivilista.
Em outras palavras, gerar um filho significa comprometer-se com a formação da personalidade do infante, notadamente no seu aspecto emocional e social. A indenização aqui tem, por óbvio, não a restauração de um status quo ante, uma vez que a formação de uma personalidade é processo temporal aparentemente irreversível, mas um desestímulo financeiro, não ao pai faltoso, mas aos demais que ainda podem corrigir o rumo.
A decisão do STJ pode bem ser explicada pela função econômica da responsabilidade civil: é razoável a expectativa de que, diante da certeza da sanção civil (fato que Levitt igualmente destaca como positivo para a condução do comportamento humano), o indivíduo candidato a pai ou mãe pensará duas vezes antes de aventurar-se a uma paternidade ou maternidade irresponsável, uma vez que sabe, estará empenhando sua prosperidade material futura a uma perseguição indenizatória do filho “mal-amado”.
Se a paternidade irresponsável – sem afeto e sem cuidado, estava justificando a proliferação de filhos cuja personalidade mal-formada expunha a sociedade e futuros psicopatas e párias sociais (com a palavra, os números de Levitt), numa decisão econômica, o Superior Tribunal de Justiça inseriu um elemento de racionalidade a mais no jogo, decisão esta que capilariza-se nos tribunais e juízes amiúde, nas petições dos advogados e defensores públicos, nas bocas das comadres, nos artigos de jornais, nas conversas de bar, nos diálogos íntimos entre amantes, nas respostas ríspidas de filhos menores, enfim, que incorpora-se à cultura popular e redireciona o comportamento dos indivíduos de modo a racionalizar seus ganhos e minimizar suas perdas, bem conforme os pressupostos economicistas, e cujos frutos, analogamente ao caso da Suprema Corte Norte-Americana em 1973, somente colherá seus frutos econômicos e sociais anos depois.

3. Indenização por dano afetivo e responsabilidade civil sob nova perspectiva

Maria Celina Bodin de Moraes pondera:

Assim, além de sua função estrutural, a reparação do dano, a chamada função compensatória, estaria ela sendo distorcida para cumprir tantas outras funções, de caráter variado: função punitiva, pedagógica, exemplar, de consolo, de desestímulo, de instrumento de justiça social, de distribuição de renda, de substituição dos deveres do Estado etc. (…)
As inundações de fato estão ocorrendo como resultado do encontro entre um instrumento ainda não consolidado e demandas sociais por longo tempo reprimidas. Cabe agora, respeitado o modelo solidarista imposto pela Constituição, reelaborar os conceitos, delimitar as funções, racionalizar os critérios de imputação, em suma, proceder à reconstrução racional do sistema da responsabilidade civil no âmbito do ordenamento jurídico nacional. Este é o trabalho da doutrina e precisa ser realizado. (MORAES, 2006, p. 255)
A perspectiva da autora é de que a flexibilização do instituto jurídico da responsabilidade civil estaria funcionando como uma distorção da função do instituto. À guisa de conclusão ousamos divergir desta visão.
A uma, porque tipos jurídicos sofrem, ao longo do tempo, mutações e adaptações oriundas da dialética inerente ao fenômeno cultural que é o próprio Direito. Nem precisamos tecer longas considerações ou mergulhar fundo na História. Basta apenas lembrar que o próprio conceito jurídico emprestado ao termo “família” ampliou sua conotação, atingindo grupos sociais tradicionalmente não reconhecidos como “familiares (tais como a união estável e a união homoafetiva), e a sua função (tradicionalmente uma relação geralmente duradoura de poder, procriativa e célula de cosmovisão clássicamente ligadas ao mundo cristão, do ponto de vista Ocidental), para uma família despojada de hierarquias, mutante e, no jargão do sociólogo polonês Zigmunt Bauman, líquida, i. E., baseada em relações frágeis e dinâmicas.
Se o Direito reputa por família o fenômeno líquido e multiforme hodiernamente considerado como familiar, não há justificativa plausível, do ponto de vista sociológico para sustentar-se uma ferramente jurídica sob o status de categoria imutável e antever o manejo multifuncional de suas aplicações como uma distorção, com toda a carga pejorativa do termo.
A duas, pelo fato de que a mudança de paradigma na pesquisa jurídica, na abordagem dos problemas enfrentados pelo operador do Direito e, concomitantemente pela literatura especializada claramente tem por desafio enfrentar a realidade do comportamento humano em suas múltiplas dimensões. Se o Direito regra comportamentos, não pode reproduzir nas academias a subreptícia e inocente crença de que que vivemos num mundo ideal em que as decisões judiciais tem por finalidade única a busca de algum ideal de Justiça dedutivamente construído, sem levar em conta finalidades comportamentais coletivas e custos sociais envolvidos

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